domingo, 26 de janeiro de 2014

CONTOS SECOS - SOBRE NUDEZ E TAXIS - 26/01/2014 - por Roberto Pompeo


Um braço feminino faz sinal para um taxi, por entre as colunas em frente a um prédio. O taxi para, uma mulher nua sai de entre as colunas e entra apressadamente no carro, sinalizando quase em desespero para que ele ande. Era uma mulher atraente, assustada e... nua. Surpreso, o taxista olha aquela cena e pensa: como é que ela vai me pagar a corrida...?!

O motorista evitava olhar diretamente para a mulher, mas era quase inevitável tal a perfeição de seus traços. Ela não tentava esconder-se, antes olhava para todos os lados como se alguém a perseguisse. Aquele medo era excitante.
O taxista estava com a cabeça em turbilhão. Imaginava o que teria acontecido. Por que ela estaria tão desesperada? Por que estava nua? O que teriam sentido as colunas daquele prédio...? Aonde iria?
Depois de três quadras, resolveu perguntar. A resposta soou histérica: para longe daqui. Mais três quadras e ele reiterou a pergunta. Ela deu um endereço no subúrbio.

Não era uma vizinhança das piores. Ela indicou um sobrado grande, visivelmente reformado, aumentado ao longo do tempo, a melhor moradia da rua. Em outro bairro seria uma casa insignificante, ali era quase de luxo. Houve impasse. Ele não queria ouvir o que sabia que ouviria. Era óbvio que ela não tinha as chaves. Ele devia tocar a campainha alertando sua chegada e as condições.

A barba parcialmente grisalha do homem que apareceu indicava alguém na casa dos cinquenta altos. Já vira aquele olhar, continha fúria. Pai, marido, amante? Passou pelo taxista como este fosse um fantasma, munido de um cobertor, trouxe a passageira para dentro. Com o dedo indicador para o alto bradou: espere!

Convencido mais pelo desejo de receber a corrida do que pelo tom autoritário do homem, esperou. Não mais que quatro minutos.

O homem voltou com um revólver na mão. Entrou no banco de trás. O taxista assumiu seu posto. Pelo retrovisor percebeu que a fúria nos olhos do homem se transformara em violência homicida. Me leve aonde apanhou minha filha! Uma pergunta respondida. Pai. Quantas por responder.

O taxista pensou em sua mulher e seus filhos, que o esperavam em casa. A realidade não era tão atraente quanto o quadro para o qual queria retornar. Qualquer família é melhor do que um desconhecido com uma arma.

O taxista tentou capitular. Mas não havia oitiva possível nos olhos rúbeos do pai. Se quisesse receber devia levá-lo. Novamente, a visão reluzente da arma foi mais convincente que a ganância, ainda que ambos naquele momento o dirigissem ao mesmo destino...

A corrida foi longa apesar da não tão grande distância. O homem falava sozinho. Esbravejava. O que lhe teria dito a filha? O que teria acontecido naquele prédio? Aquele monólogo não respondia nada, mesmo quando em alguns momentos se transformava num diálogo de um só. O homem fazia perguntas e ele mesmo as respondia. Respostas insanas a perguntas sem resposta.
Finalmente, chegaram.

O homem saiu em direção ao edifício, não sem antes bradar com o indicador para o alto: espere. Ele havia esperado antes, agora o valor era o dobro. E também havia a curiosidade...

O pai da garota nua desapareceu dentro do prédio, depois de apertar vários botões do interfone e contar com a credulidade da senhora do 22.
Quando seu olhar voltou para dentro do taxi, o motorista viu uma pequena imagem de santa balançando pendurada no retrovisor. Lembrou da garota. Esfregou vigorosamente os olhos para desmanchar aquela imagem blasfema de sua retina. Pensou novamente em sua família. Há quanto tempo não vislumbrava a nudez. Mal via os filhos, cujos horários não coincidiam com os seus. E eles também não faziam questão de enxergá-lo. Um provedor para seus estudos em faculdade particular, mas um constrangimento para suas máscaras sociais. A alternativa ao revólver não era tão tentadora. Resolveu esperar mais um pouco.

Enquanto isso o homem subia cauteloso as escadas. Certamente por indicação da filha, sabia aonde ir.  A porta do apartamento 41 estava apenas encostada. Ele cogitou por uns instantes antes de empurrá-la. A arma tremia em suas mãos. O olhar homicida havia cedido passo à dúvida. Duvidava da filha. Duvidava de sua coragem. Duvidava de tudo. Sua maior certeza naquele momento era que o taxista o esperaria para uma possível fuga, movido pelo dinheiro.

Empurrou a porta lentamente, fazendo-se preceder pela arma. Imitou as cenas que vira repetidamente em filmes. Entrou. A sala estava em ordem, prosseguiu. No quarto se abismou.
Um homem aproximadamente com a mesma idade que a dele jazia sobre o lençol branco tingido de vermelho. Um orifício na têmpora direita indicava a entrada da bala. A saída do outro lado era mais evidente, numa mancha que se abria em cone de fragmentos variados sobre o fundo branco. No chão, à direita da cama, seguindo a direção do braço do defunto, uma arma.
O breve relato de sua filha fora confuso, mas certamente não havia mencionado nenhum cadáver. Ameaça sim, violência sim, mas não um cadáver aparentemente suicida. Por via das dúvidas que já o assolavam limpou as digitais da arma com um lenço, como nos filmes. Inocentava a filha de um homicídio ou levantava suspeitas sobre o possível homicídio de um suicida? Não sabia, não pensara nisso.

Quando descia as escadas, atordoado, via olhos nas fechaduras e imaginava sombras por baixo das portas. Saiu às pressas do prédio como um afogado que ganha a tona d’água. Guardou o revólver dentro das calças.
Precisava ser mais rápido que a aurora.
O taxi havia partido.

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