Um braço feminino faz sinal para um taxi, por entre as colunas
em frente a um prédio. O taxi para, uma mulher nua sai de entre as colunas e
entra apressadamente no carro, sinalizando quase em desespero para que ele
ande. Era uma mulher atraente, assustada e... nua. Surpreso, o taxista olha
aquela cena e pensa: como é que ela vai me pagar a corrida...?!
O motorista evitava olhar diretamente para a mulher, mas era
quase inevitável tal a perfeição de seus traços. Ela não tentava esconder-se,
antes olhava para todos os lados como se alguém a perseguisse. Aquele medo era
excitante.
O taxista estava com a cabeça em turbilhão. Imaginava o que
teria acontecido. Por que ela estaria tão desesperada? Por que estava nua? O
que teriam sentido as colunas daquele prédio...? Aonde iria?
Depois de três quadras, resolveu perguntar. A resposta soou
histérica: para longe daqui. Mais três quadras e ele reiterou a pergunta. Ela
deu um endereço no subúrbio.
Não era uma vizinhança das piores. Ela indicou um sobrado
grande, visivelmente reformado, aumentado ao longo do tempo, a melhor moradia
da rua. Em outro bairro seria uma casa insignificante, ali era quase de luxo.
Houve impasse. Ele não queria ouvir o que sabia que ouviria. Era óbvio que ela
não tinha as chaves. Ele devia tocar a campainha alertando sua chegada e as
condições.
A barba parcialmente grisalha do homem que apareceu indicava
alguém na casa dos cinquenta altos. Já vira aquele olhar, continha fúria. Pai,
marido, amante? Passou pelo taxista como este fosse um fantasma, munido de um
cobertor, trouxe a passageira para dentro. Com o dedo indicador para o alto
bradou: espere!
Convencido mais pelo desejo de receber a corrida do que pelo
tom autoritário do homem, esperou. Não mais que quatro minutos.
O homem voltou com um revólver na mão. Entrou no banco de
trás. O taxista assumiu seu posto. Pelo retrovisor percebeu que a fúria nos
olhos do homem se transformara em violência homicida. Me leve aonde apanhou
minha filha! Uma pergunta respondida. Pai. Quantas por responder.
O taxista pensou em sua mulher e seus filhos, que o
esperavam em casa. A realidade não era tão atraente quanto o quadro para o qual
queria retornar. Qualquer família é melhor do que um desconhecido com uma arma.
O taxista tentou capitular. Mas não havia oitiva possível
nos olhos rúbeos do pai. Se quisesse receber devia levá-lo. Novamente, a visão
reluzente da arma foi mais convincente que a ganância, ainda que ambos naquele
momento o dirigissem ao mesmo destino...
A corrida foi longa apesar da não tão grande distância. O
homem falava sozinho. Esbravejava. O que lhe teria dito a filha? O que teria
acontecido naquele prédio? Aquele monólogo não respondia nada, mesmo quando em
alguns momentos se transformava num diálogo de um só. O homem fazia perguntas e
ele mesmo as respondia. Respostas insanas a perguntas sem resposta.
Finalmente, chegaram.
O homem saiu em direção ao edifício, não sem antes
bradar com o indicador para o alto: espere. Ele havia esperado antes, agora o
valor era o dobro. E também havia a curiosidade...
O pai da garota nua desapareceu dentro do prédio, depois de
apertar vários botões do interfone e contar com a credulidade da senhora do 22.
Quando seu olhar voltou para dentro do taxi, o motorista viu
uma pequena imagem de santa balançando pendurada no retrovisor. Lembrou da
garota. Esfregou vigorosamente os olhos para desmanchar aquela imagem blasfema
de sua retina. Pensou novamente em sua família. Há quanto tempo não vislumbrava
a nudez. Mal via os filhos, cujos horários não coincidiam com os seus. E eles
também não faziam questão de enxergá-lo. Um provedor para seus estudos em
faculdade particular, mas um constrangimento para suas máscaras sociais. A
alternativa ao revólver não era tão tentadora. Resolveu esperar mais um pouco.
Enquanto isso o homem subia cauteloso as escadas. Certamente
por indicação da filha, sabia aonde ir.
A porta do apartamento 41 estava apenas encostada. Ele cogitou por uns
instantes antes de empurrá-la. A arma tremia em suas mãos. O olhar homicida
havia cedido passo à dúvida. Duvidava da filha. Duvidava de sua coragem.
Duvidava de tudo. Sua maior certeza naquele momento era que o taxista o
esperaria para uma possível fuga, movido pelo dinheiro.
Empurrou a porta lentamente, fazendo-se preceder pela arma.
Imitou as cenas que vira repetidamente em filmes. Entrou. A sala estava em
ordem, prosseguiu. No quarto se abismou.
Um homem aproximadamente com a mesma idade que a dele jazia
sobre o lençol branco tingido de vermelho. Um orifício na têmpora direita
indicava a entrada da bala. A saída do outro lado era mais evidente, numa
mancha que se abria em cone de fragmentos variados sobre o fundo branco. No
chão, à direita da cama, seguindo a direção do braço do defunto, uma arma.
O breve relato de sua filha fora confuso, mas certamente não
havia mencionado nenhum cadáver. Ameaça sim, violência sim, mas não um cadáver
aparentemente suicida. Por via das dúvidas que já o assolavam limpou as
digitais da arma com um lenço, como nos filmes. Inocentava a filha de um
homicídio ou levantava suspeitas sobre o possível homicídio de um suicida? Não
sabia, não pensara nisso.
Quando descia as escadas, atordoado, via olhos nas
fechaduras e imaginava sombras por baixo das portas. Saiu às pressas do prédio
como um afogado que ganha a tona d’água. Guardou o revólver dentro das calças.
Precisava ser mais rápido que a aurora.
O taxi havia partido.